"Não sei escrever, mas quero. Devoro cada instante e desespero, quero essa palavra que espero"

quarta-feira, 7 de março de 2012

Perdidos

A caminho do carro, saído do supermercado, seguia o meu espírito pendendo entre a leveza dos sacos e o peso do conta, quando fui sobressaltado pelo roncar estrondoso de um carro.

Se a princípio nada via, rapidamente o minúsculo palco enformou a cacofonia.

Antes, nesse ínfimo instante de cegueira, pressenti um idiota, arreganhado ao volante de um qualquer Turbo GT, de muitas primaveras, quase tantos cavalos e escape muito racing, sem dúvida o melhor do bairro.

Assim era. Nos longos momentos que se seguiram, um borrão branco, kilos e kilos de plástico, rasgou o espectro. Acelerações violentas, guinadas e razias, enfim terminavam numa última e vigorosa traseirada que deixava tudo aquilo fumegando diante de mim, ali mesmo no lugar para deficientes.

E foi então que, por de trás de um vidro mais cansado que inclinado, insinuando velocidades nunca atingidas, pude vislumbrar um casalinho imberbe.

Não se olhavam mas, era evidente, o ambiente era crispado, de nervos. Logo concluí, analítico, discutiam e a absurda cena ao volante servira de pontuação a um argumento mais exigente, algo como: "Se não te calas espeto o carro ou atropelo alguém, ouviste?!". Reconheça-se, tem de facto alguma força.

Nesse momento, o rapazola abre a porta e sai, decidido, hirto, fulo. Fraca figura, magríssimo, face branca, defunta, pincelada apenas pelo rubor sanguíneo da irritação. Já o cabelo, farto e esculpido a gel, parecia querer gritar uma agressividade que o casaco de cabedal negro e a ganga coçada e justa desarmavam. Não consegui definir se me sentia atemorizado ou desafiado para um disco-hit.

A questão irrelevava porém, ao ritmo acelerado de passos que já rodeavam o chaço e de um súbito abrir de porta pela rapariga, que logo se ergueu. Estremeceu então fundo o meu pânico, quando o sujeito, em chegando, atrasou o braço direito, como quem engatilhava.

Mas eis que, nesse distinto ápice, em que a antecipação galga realidade, o inesperado acontecia. A rapariga abria o seu braço e o greaser renascido ali enfiava o seu, seguindo o par por ali fora, de braço dado, agora em versão indignada.

Grogue de espanto, vejo-os então olhar, fulminantes, para um outro carro, onde um homem parecia reter-se em demasia, emboscado, e escutei um "Palhaço!!!".

Tudo aquilo, todo aquele disparate, o perigo, o alarme, o total despropósito reduzia-se enfim a uma disputa por um lugar, para um carro, num estacionamento vazio, numa terriola qualquer.

Que ninguém me desdiga. Estamos perdidos.

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