Desde que me conheço que carrego dentro uma dúvida profunda sobre a minha religiosidade.
Baptizado ainda bebé, 1.ª Comunhão feita em devido tempo, teria, tudo indicava, reunido as condições para um sereno percurso de romana cristandade.
Nada disso. Infestando as boas raízes, cedo surgiam os problemas. Por todo o lado, demasiadas infâmias, absurdos e desgraças cercavam uma alma que, sem grande espírito mas com vontade, insistia ainda no testemunho que lhe fora plantado.
A verdade é que, já então, pouco parecia bater certo. As paixões inúteis, as sovas rotineiras por adolescentes idiotas, aquele miúdo da Sala C que perdeu o cabelo, depois desapareceu, a vergonha dos beijinhos de uma professora demasiado maternal.
Afinal, por onde andava quando precisávamos Dele? De facto, para quem tudo podia, parecia mover-se pouco ou mesmo nada.
Tudo bem, talvez que, sem darmos conta, nos safasse de quando em vez. Talvez aquele “Suficiente” a Matemática fosse uma graça divina. Quem sabe se ser poupado aos peixes pelo único surfista da praia ou os 7-1 ao Benfica não seriam dedinho lá de cima? Ou mesmo aquele inesperado entreolhar – asseguro-vos, todo ele era paixão! – da minha mais que tudo, talvez...
Mas…bolas! E o resto? As borbulhas nojentas, os odores corporais descontrolados, a voz indefinida, a lógica suicida de uns pés crescendo sem sentido, o impossível pentear de um cabelo em desistência... Hellooo?!! Eu precisava de ajuda!!!
Os anos corriam soltos e a situação, bem longe de uma evolução positiva, seguia de perto os limites do desaforo. O 1.º beijo? Um flop lambido e sensaborão. E o 1.º sexo? Esqueçamos, porque também aí nada houve de...elevado.
Pior, aos ridículos desastres pessoais somava-se, irrefreada, a espiral insana de uma sociedade em dissolução de valores e humanidade, em que os miseráveis se cobriam de negro e sangue e os bilionários corrompiam milionários. Catástrofes terríveis, brutalidades de toda a sorte, crimes tão impensáveis quanto impunes e crianças, milhares, milhões, morrendo apenas porque haviam nascido.
Perante tudo isto, nada. Nem um sinal, um raio, uma luzinha trémula de esperança dos céus vertida. E eu a pensar, triste, roendo em mim: “Mas, o que é isto? Que Deus é este que carrego?”. O meu espírito enfim quebrava...
Anos depois, erguidas na realidade as piores profecias, restam somente vislumbres da luz então extinta e a mensagem agoniza fundo. Os poucos actos de crença tornaram-se, sem que o pudesse evitar, absolutamente mecânicos, animados pela rotina, uma ou outra conveniência do momento, mas sobretudo por amores bem terrenos, à família, aos filhos, ao futuro deles.
Mas, aqui chegado, quase 40 anos passados, consigo por fim oferecer-vos alguns factos como relativamente seguros.
Desde logo, restam-me agora poucas dúvidas que Deus, a existir, terá servido, como sempre nos ensinaram, de molde para a criação do Homem. A sua colecção persistente de inacções, incapacidades e menosprezo pelo seu semelhante assim o atestam, de forma tristemente plena.
Mais, fundada ou não, há algo de verdadeiramente poderoso na ideia de Deus. Acredito que está em nós antes mesmo de nos chegar, em cada dúvida, medo, desejo ou esperança, como um copo que precisa de ser cheio.
Sei também que, por demasiado tempo, sobre o que se ali se verte em quase nada opinamos. Um deus, vinte deuses ou deus nenhum, dependo da Era, da geografia e sobretudo da sorte.
Sei ainda que o que recebemos fica, acrescenta-se a nós e que quando, por alguma razão, nos quisermos resgatar, será necessário persistir, longamente, porque somos também nós do outro lado e há que lapidar parte daquilo em que, durante anos, nos viemos a tornar.
E que, se algures no processo, formos incautos ou indecisos, serão tremendas as tentações, da doença súbita à viagem de avião, do jogo decisivo ao crédito a vencer, todas as mais belas maçãs do pomar outrora abandonado. Em várias ocasiões, talvez para sempre, seremos forçados a não ceder a uma reza tranquilizadora ou a um qualquer apelo para cima deitado.
Ao que tudo indica, será um caminho sem fim, percorrido às avessas, como se de um regresso se tratasse. Mas, posso assegurar-vos, um passo atrás do outro, o percurso faz-se e tem sabor e cheiro de liberdade.
Valha-te Deus!
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