"Não sei escrever, mas quero. Devoro cada instante e desespero, quero essa palavra que espero"

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

De alto a baixo

Desde que me conheço que carrego dentro uma dúvida profunda sobre a minha religiosidade.

Baptizado ainda bebé, 1.ª Comunhão feita em devido tempo, teria, tudo indicava, reunido as condições para um sereno percurso de romana cristandade.

Nada disso. Infestando as boas raízes, cedo surgiam os problemas. Por todo o lado, demasiadas infâmias, absurdos e desgraças cercavam uma alma que, sem grande espírito mas com vontade, insistia ainda no testemunho que lhe fora plantado.

A verdade é que, já então, pouco parecia bater certo. As paixões inúteis, as sovas rotineiras por adolescentes idiotas, aquele miúdo da Sala C que perdeu o cabelo, depois desapareceu, a vergonha dos beijinhos de uma professora demasiado maternal.

Afinal, por onde andava quando precisávamos Dele? De facto, para quem tudo podia, parecia mover-se pouco ou mesmo nada.

Tudo bem, talvez que, sem darmos conta, nos safasse de quando em vez. Talvez aquele “Suficiente” a Matemática fosse uma graça divina. Quem sabe se ser poupado aos peixes pelo único surfista da praia ou os 7-1 ao Benfica não seriam dedinho lá de cima? Ou mesmo aquele inesperado entreolhar – asseguro-vos, todo ele era paixão! – da minha mais que tudo, talvez...

Mas…bolas! E o resto? As borbulhas nojentas, os odores corporais descontrolados, a voz indefinida, a lógica suicida de uns pés crescendo sem sentido, o impossível pentear de um cabelo em desistência... Hellooo?!! Eu precisava de ajuda!!!

Os anos corriam soltos e a situação, bem longe de uma evolução positiva, seguia de perto os limites do desaforo. O 1.º beijo? Um flop lambido e sensaborão. E o 1.º sexo? Esqueçamos, porque também aí nada houve de...elevado.

Pior, aos ridículos desastres pessoais somava-se, irrefreada, a espiral insana de uma sociedade em dissolução de valores e humanidade, em que os miseráveis se cobriam de negro e sangue e os bilionários corrompiam milionários. Catástrofes terríveis, brutalidades de toda a sorte, crimes tão impensáveis quanto impunes e crianças, milhares, milhões, morrendo apenas porque haviam nascido.

Perante tudo isto, nada. Nem um sinal, um raio, uma luzinha trémula de esperança dos céus vertida. E eu a pensar, triste, roendo em mim: “Mas, o que é isto? Que Deus é este que carrego?”. O meu espírito enfim quebrava...

Anos depois, erguidas na realidade as piores profecias, restam somente vislumbres da luz então extinta e a mensagem agoniza fundo. Os poucos actos de crença tornaram-se, sem que o pudesse evitar, absolutamente mecânicos, animados pela rotina, uma ou outra conveniência do momento, mas sobretudo por amores bem terrenos, à família, aos filhos, ao futuro deles.

Mas, aqui chegado, quase 40 anos passados, consigo por fim oferecer-vos alguns factos como relativamente seguros.

Desde logo, restam-me agora poucas dúvidas que Deus, a existir, terá servido, como sempre nos ensinaram, de molde para a criação do Homem. A sua colecção persistente de inacções, incapacidades e menosprezo pelo seu semelhante assim o atestam, de forma tristemente plena.

Mais, fundada ou não, há algo de verdadeiramente poderoso na ideia de Deus. Acredito que está em nós antes mesmo de nos chegar, em cada dúvida, medo, desejo ou esperança, como um copo que precisa de ser cheio.

Sei também que, por demasiado tempo, sobre o que se ali se verte em quase nada opinamos. Um deus, vinte deuses ou deus nenhum, dependo da Era, da geografia e sobretudo da sorte.

Sei ainda que o que recebemos fica, acrescenta-se a nós e que quando, por alguma razão, nos quisermos resgatar, será necessário persistir, longamente, porque somos também nós do outro lado e há que lapidar parte daquilo em que, durante anos, nos viemos a tornar.

E que, se algures no processo, formos incautos ou indecisos, serão tremendas as tentações, da doença súbita à viagem de avião, do jogo decisivo ao crédito a vencer, todas as mais belas maçãs do pomar outrora abandonado. Em várias ocasiões, talvez para sempre, seremos forçados a não ceder a uma reza tranquilizadora ou a um qualquer apelo para cima deitado.

Ao que tudo indica, será um caminho sem fim, percorrido às avessas, como se de um regresso se tratasse. Mas, posso assegurar-vos, um passo atrás do outro, o percurso faz-se e tem sabor e cheiro de liberdade.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Episódios #1 – A sala de espera

Uma ida ao médico nunca será, para mim, um episódio de tranquilidade. Com efeito, em tais ocasiões, um poderoso sentimento de vulnerabilidade toma controlo e combate, com demasiada competência, um registo desejado de serena quietude e confiança.

Talvez por isso, com os sentidos em alerta geral, dou por mim a absorver, vagarosa e apuradamente, cada minuto passado em salas de espera, como se a minha mente procurasse distrair-se, ancorando medos em pequenos factos e imagens.

Ora, numa última visita, este frenesim sofreu uma estranha transfiguração e o Eu paciente, ansioso e de unha dilacerada, cedeu a um outro, analítico, cínico, quase científico.

Inesperadamente, os meus olhos abandonavam a relativa tibieza de uma ânsia mal contida e perscrutavam agora com o crivo apertado de um censor social.

O cenário facilitava, diga-se. Ali estava, no ambiente griffe de um hospital privado, pleno de reluzentes placas acrílicas, finíssimas TVs e centenas de pueris funcionários, dando corpo orgulhoso às suas fardas e lenços de autor.

Mas comecemos, como convém, pelo início.

A primeira claríssima evidência foi a de que algo se passa com as elites. Das duas, uma: ou nunca tanta gente fez parte delas, o que tinha a sua graça ou, como suspeito, o engodo de seguradoras e hospitais conseguiu finalmente o pleno. Por toda a gente a pagar à parte pelos serviços que já paga à partida.

E os resultados eram evidentes, a sala estava inundada de gente, realidade impensável há bem poucos anos atrás. Feliz por estar integrado, com a minha gente a meu lado, fiquei simultaneamente fulo por confirmar que, mesmo em ambiente queque, conseguem sempre fazer-nos sentir como gado. Enfim…

Acto seguido, puxei, esperançadamente, a senha correcta (pois sem ela, naquele local, não nos conseguem ver ou ouvir) e aguardei pela minha vez.

Nesse entretanto, pude confirmar uma teoria minha de muitos anos. A de que as recepcionistas são, também elas, médicas. Têm de ser! De outra forma, como enquadrar um discurso e uma postura tão magnificentes, tão conhecedores. Elas sabem tudo! O nome completo do exame ao esófago, toda a preparação para a análise à urina, até quando é que o Dr. está de férias (lá está, são colegas), tudo, tudo. São geniais.

Não obstante e por certo por inveja, julgo que pelo menos 70% dos ali sentados, eu incluído, não se importariam de, só durante 2 ou 3 minutos, lhes apertar os bem perfumados pescoços, asfixiando, muito ao de leve, tanta e tão irritante soberba.

Adiante. À minha esquerda sentava-se uma Srª elegantíssima, dos seus 70 e tal anos, trajada com equilíbrio e muito gosto. Era a própria elite, de bege vestida. Mas, percebia-se, estatelado do alto de uma imagem impecável, caía um profundo desconforto. Pois que aquele ambiente que fora seu, via-o agora perdido para a uma quase plebe, moldando um semblante rígido e emudecido pela frustração.

Enquanto ali permaneceu, em sofrimento, jamais tirou os óculos escuros, nem mesmo quando, apoiando-se na bela bengala, se dirigiu ao WC. Apenas pude então imaginar - e foi, por certo, melhor assim - o que aquela alma asséptica terá passado nos longos minutos em que desapareceu. No regresso, pareceu-me descobrir uma lágrima riscando o blush, num epílogo sempre adequado para uma era perdida.

Olho agora em frente. Ao lado de um homem de calça sarja azul-bebé e camisa desabotoada em baixo, como se, por alguma razão, não se tivesse conseguido vestir, sentava-se uma dupla trágica.

Uma mãe e um filho. Ela recta, sóbria e discreta, ele acocorado, um vulto de negro vestido, perfurado por incontáveis ferrolhos e ferragens, de pernas esticadas em V. Podiam-se ainda sentir os acordes possuídos e o calor das chamas de um qualquer palco de onde se despejara aquele marmanjo, ali meio adormecido. A mãe, essa mostrava no rosto, clamorosa, a história de uma ruptura, entre o amor a um filho e o desamor ao que esse filho se tornara. “A vergonha da nossa vergonha deve ser terrível” - pensei.

Sigo. Ao fundo, à direita, atrás de duas teens, tias de 1.º Ano e absolutamente decalcadas entre si, reparo num casal feérico.

Ele trajando modelo Mao Tse Tung, claramente transtornado por estar em território inimigo, ela vestindo o último grito – literalmente – dos anos 60. Era evidente que aqueles dois, na vida como na roupa, se apaixonaram novos, que a paixão se transformara em amor e que, desde então, nada, excepto o sentido estético, se perdera.

E foi nesse momento que, enquanto percebia, bem ao canto da sala, a presença hirta, apertada, de um cinquentão barricado atrás de uma malinha suspeita, escutei, por entre portas, nomes familiares. Os meus...

Os míseros instantes que se seguiram foram de sentada esquizofrenia. Se parte de mim exultava por despachar o assunto, outra quedava na ridícula esperança de, por bizarra coincidência, ali haver uma outra pessoa com os mesmíssimos 6 nomes e de assim me safar, por mais uns minutos, da terrível mão médica.

Não era o caso. Ergui-me com o ar mais saudável que consegui e lá fui, deixando um mudo “Volto em Setembro!” para todos quantos ficavam.

Pinela

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Cavaco Silva (1/50)

Não tenho por hábito guardar rancor.

Esta característica pessoal é, esclareça-se, perfeitamente inconsciente, não alimentada por lógica doutrinal, ânsia pacifista ou, menos ainda, reflexo de uma especial cristandade de alma.

Muito concretamente, julgo tratar-se de uma incapacidade física, morfológica.

De facto, assuntos infinitamente mais prementes e interessantes são desafio sobejo para os meus contados neurónios, inviabilizando a manutenção, em condições mínimas, de qualquer acervo revanchista.

Ora, com um tal enquadramento, dir-se-ia...craniano, uma mão bastará para trocar por dedos o n.º de pessoas que, ao longo de trinta e muitos anos, me acidificaram o espírito ao ponto da úlcera.

E, sem dúvida, Cavaco Silva, é uma dessas pessoas.

Não sem razão, entendo. Este esfíngico indivíduo, meio termo entre um mau dia de Jim Henson e um Moai fora de prumo, insiste, decorrido mais de 1/4 de século, em destruir preciosos momentos da minha existência, tantos quantos aqueles em que, não autorizado, atravessa o meu espectro para, pleno de si, reviver o seu eterno sonho de educar uma horda bruta, que vislumbra lançada às suas vestes, bebendo, avidamente, entre raios olímpicos, os seus ensinamentos e ditames.

Sem dúvida, a linguagem que utilizo é, também ela, doentia. Reconheço-o. Mas, em minha defesa, recordo, é precisamente de um assunto de saúde que falamos. A minha saúde. Cavaco Silva faz-me mal, bestializa-me, desperta o pior que há em mim.

A mera ideia de que há um Ser, mais ou menos inteligente, académico ou professoral, que se entende e conduz pela certeza própria de que é mais do que os demais, faz da bílis sangue e corrói-me por dentro.

A cada dos seus "eu tinha alertado", por cada assomo virginal e impoluto, em cada esgar de imparcialidade travestida de "não posso comentar", o meu organismo tremula e ameaça a pane.

Cavaco Silva é assim, para mim, uma bizarra Kryptonite. Terrível conclusão esta quando, à evidência, não completo a equação e, pior, os meus ridículos poderes se resumem a 104 teclas e uma vintena de dichotes irritados e de duvidoso gosto.

Estou portanto em dificuldade, carecido de tratamento. Resta-me assegurar a sobrevivência. Não baixar a guarda.

O título acima é o meu mote. Este texto será o 1.º de, pelo menos, 50, que me auto-prescrevi para que, no entretanto - haja esperança - possa lograr a imunidade.

Pinela

terça-feira, 21 de junho de 2011

Fernando Nobre - Case study

Fernando José de La Vieter Ribeiro Nobre. Ou, tão-somente, Fernando Nobre.

Eis o nome público de um homem cuja biografia recente se eleva como fogo-fátuo sobre a viciação da natureza humana.

Eis um profissional reconhecido, um académico apreciado, uma pessoa admirada, a imagem de homem generoso que, em paragens distantes, abraçava infortúnios e terrores.

Eis tudo isso e muito mais desperdiçado, pervertido. O passado é passado e este presente não terá futuro.

Tragicamente, do alto de uma vida tão vivida, Fernando Nobre não viu, não quis ver, que caminhava, pelo seu pé, para um fim sem remédio, sem cura médica.

Desbaratando um capital que era seu, quis ser mais, quis ser tudo, sem abdicar de nada, excepto de si próprio.

Com um despudor que não se lhe reconhecia, fez sua a Verdade. Fez dela o que quis e quanto quis. Guiado pela vaidade, o aplauso e os holofotes, torneou juras, compromissos e esperanças, consumiu-se na raiva de quem o tomou por outro e, pior, pelo ridículo.

Recordar os últimos meses de Fernando Nobre é assim um acto doloroso. Uma dor que se sente na pele, como o ardor de uma inocência que insiste em confundir esperança e desejo com verdade pura e crua.

Afinal, aquele Fernando Nobre não existia. Perdeu-se na memória de tantos gestos despojados e admiráveis e ali ficou.

Restará agora a sua sombra, prostrada ao dízimo e ao esquecimento.

Pinela