Uma ida ao médico nunca será, para mim, um episódio de tranquilidade. Com efeito, em tais ocasiões, um poderoso sentimento de vulnerabilidade toma controlo e combate, com demasiada competência, um registo desejado de serena quietude e confiança.
Talvez por isso, com os sentidos em alerta geral, dou por mim a absorver, vagarosa e apuradamente, cada minuto passado em salas de espera, como se a minha mente procurasse distrair-se, ancorando medos em pequenos factos e imagens.
Ora, numa última visita, este frenesim sofreu uma estranha transfiguração e o Eu paciente, ansioso e de unha dilacerada, cedeu a um outro, analítico, cínico, quase científico.
Inesperadamente, os meus olhos abandonavam a relativa tibieza de uma ânsia mal contida e perscrutavam agora com o crivo apertado de um censor social.
O cenário facilitava, diga-se. Ali estava, no ambiente griffe de um hospital privado, pleno de reluzentes placas acrílicas, finíssimas TVs e centenas de pueris funcionários, dando corpo orgulhoso às suas fardas e lenços de autor.
Mas comecemos, como convém, pelo início.
A primeira claríssima evidência foi a de que algo se passa com as elites. Das duas, uma: ou nunca tanta gente fez parte delas, o que tinha a sua graça ou, como suspeito, o engodo de seguradoras e hospitais conseguiu finalmente o pleno. Por toda a gente a pagar à parte pelos serviços que já paga à partida.
E os resultados eram evidentes, a sala estava inundada de gente, realidade impensável há bem poucos anos atrás. Feliz por estar integrado, com a minha gente a meu lado, fiquei simultaneamente fulo por confirmar que, mesmo em ambiente queque, conseguem sempre fazer-nos sentir como gado. Enfim…
Acto seguido, puxei, esperançadamente, a senha correcta (pois sem ela, naquele local, não nos conseguem ver ou ouvir) e aguardei pela minha vez.
Nesse entretanto, pude confirmar uma teoria minha de muitos anos. A de que as recepcionistas são, também elas, médicas. Têm de ser! De outra forma, como enquadrar um discurso e uma postura tão magnificentes, tão conhecedores. Elas sabem tudo! O nome completo do exame ao esófago, toda a preparação para a análise à urina, até quando é que o Dr. está de férias (lá está, são colegas), tudo, tudo. São geniais.
Não obstante e por certo por inveja, julgo que pelo menos 70% dos ali sentados, eu incluído, não se importariam de, só durante 2 ou 3 minutos, lhes apertar os bem perfumados pescoços, asfixiando, muito ao de leve, tanta e tão irritante soberba.
Adiante. À minha esquerda sentava-se uma Srª elegantíssima, dos seus 70 e tal anos, trajada com equilíbrio e muito gosto. Era a própria elite, de bege vestida. Mas, percebia-se, estatelado do alto de uma imagem impecável, caía um profundo desconforto. Pois que aquele ambiente que fora seu, via-o agora perdido para a uma quase plebe, moldando um semblante rígido e emudecido pela frustração.
Enquanto ali permaneceu, em sofrimento, jamais tirou os óculos escuros, nem mesmo quando, apoiando-se na bela bengala, se dirigiu ao WC. Apenas pude então imaginar - e foi, por certo, melhor assim - o que aquela alma asséptica terá passado nos longos minutos em que desapareceu. No regresso, pareceu-me descobrir uma lágrima riscando o blush, num epílogo sempre adequado para uma era perdida.
Olho agora em frente. Ao lado de um homem de calça sarja azul-bebé e camisa desabotoada em baixo, como se, por alguma razão, não se tivesse conseguido vestir, sentava-se uma dupla trágica.
Uma mãe e um filho. Ela recta, sóbria e discreta, ele acocorado, um vulto de negro vestido, perfurado por incontáveis ferrolhos e ferragens, de pernas esticadas em V. Podiam-se ainda sentir os acordes possuídos e o calor das chamas de um qualquer palco de onde se despejara aquele marmanjo, ali meio adormecido. A mãe, essa mostrava no rosto, clamorosa, a história de uma ruptura, entre o amor a um filho e o desamor ao que esse filho se tornara. “A vergonha da nossa vergonha deve ser terrível” - pensei.
Sigo. Ao fundo, à direita, atrás de duas teens, tias de 1.º Ano e absolutamente decalcadas entre si, reparo num casal feérico.
Ele trajando modelo Mao Tse Tung, claramente transtornado por estar em território inimigo, ela vestindo o último grito – literalmente – dos anos 60. Era evidente que aqueles dois, na vida como na roupa, se apaixonaram novos, que a paixão se transformara em amor e que, desde então, nada, excepto o sentido estético, se perdera.
E foi nesse momento que, enquanto percebia, bem ao canto da sala, a presença hirta, apertada, de um cinquentão barricado atrás de uma malinha suspeita, escutei, por entre portas, nomes familiares. Os meus...
Os míseros instantes que se seguiram foram de sentada esquizofrenia. Se parte de mim exultava por despachar o assunto, outra quedava na ridícula esperança de, por bizarra coincidência, ali haver uma outra pessoa com os mesmíssimos 6 nomes e de assim me safar, por mais uns minutos, da terrível mão médica.
Não era o caso. Ergui-me com o ar mais saudável que consegui e lá fui, deixando um mudo “Volto em Setembro!” para todos quantos ficavam.
Pinela